Os 5 Obstáculos da Arquitectura

DOGMA
A arquitectura é uma disciplina livre. Esta contradição reflecte a ambiguidade da profissão: desde que Corbusier definiu o futuro em 1923 (Vers une architecture) que estamos destinados a executar versões da sua profecia em diferentes graus de sucesso e observância. A arquitectura é uma disciplina dogmática.

PROJECTO
Convidamos cinco colaboradores a resolver cinco problemas (obstáculos) parte de um projecto mais amplo. O objectivo de cada participação é despoletar uma reacção e não a resolução de um problema. A resposta pode ser uma nova pergunta (um obstáculo ainda mais elaborado). Sem ficar preso ao problema inicial, cada obstáculo é também uma proposta.

FORMATO
Cada participante é livre de utilizar qualquer meio de expressão (desenho, 3d, maquete, texto…) desde que cumpra com a limitação de uma página. A variedade de resultados gráficos afasta-nos de uma pré-determinação estética que contamine o conteúdo.

CO-AUTORIA
Alex Geroussis+Olka Kiszkielis
Carolina Sumares + Rik den Heijer
Beth Hughes
André Albuquerque
Vassilis Oikonomopoulos

TRANSFORMAÇÃO
Sem ingénuas pretensões de novidade, a edição, transformação e manipulação do material será feita pelos FORA  através de uma conclusão formal.
João Fagulha
Raquel Oliveira
João Ruivo


O DOGMA MODERNO
O sucesso da guerra travada por Corbusier contra o cânone arquitectónico pré-estabelecido tornou-se num dogma em si mesmo. Depois de 90 anos a pregar, a arquitectura moderna atingiu finalmente a qualidade de produto pronto a consumir. A sua supremacia não foi abalada pelas sucessivas vagas de contestação (TeamX nos anos 60, pós-modernismo nos anos 80, desconstructivismo nos anos 90,…). A revolução que transformou a forma como os edifícios são concebidos provou ser muito eficaz, ao ponto de conseguir adaptar-se a diferentes contextos culturais e à evolução das sociedades. O envelope moderno continua a ser uma ferramenta muito poderosa.

O objectivo não é confrontar o dogma moderno, mas sim questionar a noção de habitar, num contexto que muito se alterou na última década. A fronteira entre domínio público e privado, onde a arquitectura teve um papel preponderante desde o início, desvaneceu-se com o crescente poder das redes sociais digitais. Estamos perante uma excelente oportunidade de dissecar a arquitectura como instrumento definidor do espaço. 

À escala de uma casa, podemos identificar 5 possíveis preconceitos/obstáculos:


1. JANELA
Alex Geroussis+Olka Kiszkielis

Na era da internet e do crescente poder das redes sociais, a arquitectura do habitar revela dificuldades em competir com a web. As formas revolucionárias modernistas surgem actualmente mais como um dogma do que como uma real necessidade.

A fronteira entre domínio público e privado tem sido diluída e obscurecida. O utilizador tem tanta necessidade do virtual como do real. Enquanto a janela apresenta uma só vista, a internet oferece uma enorme variedade de vistas e de possibilidades de interacção. A janela para a web abre caminho a muitos mais domínios privados da actividade humana.

Sugerimos uma resposta arquitectónica radical. Todos os compartimentos privados devem estar na fachada principal, à vista do espaço público. Uma resposta arquitectónica baseada na dicotomia do homem como voyeur e exibicionista, um ser humano com necessidade de uma verdadeira interacção e de contacto íntimo. No reino da obscuridade, a arquitectura activa um círculo vicioso onde o sujeito torna-se objecto, o público torna-se privado e vice versa. Sugerimos uma arquitectura de honestidade e transparência numa última, senão fútil, tentativa de enfrentar os seus predecessores.


2.PORTA
Carolina Sumares + Rik den Heijer

As tradicionais portas das nossas casas, uma porta de entrada principal e uma porta de serviço nas traseiras, foram complementadas por novas portas. Enquanto a porta principal continua a funcionar como representação da casa à escala local, as casas são cada vez mais representadas pela sua vista aérea, através de novas tecnologias tal como o google earth. Os smartphones dizem-nos exactamente a que distância nos encontramos da cobertura da casa que queremos visitar. Esta “porta de entrada” na cobertura precisa de ser desenhada. Tal como as Palm Islands no Dubai, tudo o que interessa é um fácil reconhecimento no google earth.

No entanto, todas as portas físicas das nossas casas são ultrapassadas por uma porta digital que confunde a hierarquia na privacidade e intimidade que poderemos querer implementar. Momentos privados podem ser partilhados ao vivo por todo o mundo, e pessoas num mesmo espaço nem sequer têm necessidade de interagir fisicamente para estarem socialmente activas. Os nossos espaços tradicionais de vivência estão a ser contaminados por novas portas. Como lidar com isso?


3.PARTIÇÃO
Beth Hughes

A partição não é um obstáculo. Constitui apenas um mecanismo (como a porta, janela ou a mobília) definidor do espaço. A disposição específica destes mecanismos articula as relações humanas – a partição é reveladora de um contexto social mais amplo.

Ao longo de várias épocas e lugares, surgiram idênticas condições reflectindo diferentes normativas social e culturalmente aceites. A mesma construção arquitectónica pode albergar múltiplas interacções. O obstáculo não é a partição, mas o contexto social. Não é uma questão de reinventar partições (ou mesmo fazê-las desaparecer), mas sim de saber o como, o quando, o onde e o porquê da utilização de uma partição.

Lista de plantas em ordem aleatória: Casa rural chinesa, Villa Savoye de Le Corbusier, casa-celeiro na Suíça, habitação Dogon no Mali, casa Coleshill em Berkshire de Sir Roger Pratt, casa colmeia na Sérvia, casa tradicional japonesa, casa “shotgun” em New Orleans, casa Fisher de Louis Kahn, casa malaia, casa Moriyama dos SANAA, casa troglodita, casa Moller de Adolf Loos, casa da rua Krivoarbatsky de Konstantin Melnikov, planta para casa utópica de Will Alsop.

4.CANO DE ESGOTO
André Albuquerque

O salário mínimo em Portugal é de 485€/mês, enquanto o salário médio é de apenas 867,5€/mês. O casal ‘médio’ X ganha 1750€/mês. Com muito esforço e determinação, esse casal poderá poupar 20% do que aufere – 350€/mês -, ou seja, 5.000€/ano! (pensamos postivo: excluímos hipotecas e juros, e incluímos subsídios de férias e de natal !). Por outro lado, segundo os indicadores de mercado, o valor médio para compra de habitação em Lisboa era em Maio de 2011 de 2.250€/m2, ou seja, um ano inteiro de esforço de poupança equivale à aquisição de 2,22 m2 de casa/ano. Ludibriados por uma necessidade artificial, jovens casais, imberbes arquitectos e vorazes promotores perseguem a loucura destes bens de superluxo. Arautos da loucura especulativa somos todos nós. No decurso da nossa evolução, fomos segregando actividades e destinando funções: na casa que julgamos desejar, convocamos um espaço apenas para entrar em casa, outro para urinar, outro para lavar, outro para dormir, outro para sentar, outro para comer, etc. Cada um desses espaços independentes representa uma parcela rotunda dentro das metas que nos podemos permitir alcançar no período da nossa vida. Os WC’s representam 4 anos! Somos hoje escravos destas mesmas autoimpostas limitações. Estabeleçamos então, com honestidade intelectual, uma nova unidade de medida no nosso mercado habitacional: convertamos os aparentemente inócuos m2 em ANOS DE POUPANÇA. Posto isto, consideremos outras melhores metas para os nossos gastos; comecemos a jogar ao MINGLE: o jogo dos que decidiram abdicar de hall’s, corredores e casas de banho e os distribuíram pela casa.


5.MOBÍLIA
Vassilis Oikonomopoulos

É fundamental pensar na mobília como um obstáculo em relação à arquitectura de uma unidade de habitação. A questão crucial é saber como é que a nossa percepção e compreensão da arquitectura é desafiada pela existência da mobília, e perceber o que a mobília realmente provoca na arquitectura? Num passado próximo, tínhamos ainda duro vs suave, modular vs estático, escolha vs cultura, identidade vs homogeneidade, etc, com base numa lógica de distinções binárias. Contudo, pensando nisso de forma mais inteligente, a mobília pode ter um papel muito mais interessante e intrigante. É a arquitetura tomando variadas formas, relacionando-se com a ela própria, mas ao mesmo tempo hipermodificada de uma forma quase delirante. Pode ser um obstáculo, mas também pode ser um acelerador e modificador, pode ser um meio de continuidade e de posições-eventos de fragmentação, pode ser mensurável e identificável, ou pode ser funcional/disfuncional num plano completamente separado de entidades objectivadas.

Pensemos na mobília como um sistema em si, sempre preso no interior. No entanto, a sua presença modifica o interior de forma produtiva, aumenta e melhora a relação com a forma, bem como a relação com a função, que a arquitectura impõe. Pensando na casa como um contentor com superfícies interiores e exteriores, a mobília teria assim que se constituir nalgum tipo de membrana interna que mantivesse a adaptabilidade do todo e que reforçasse as potencialidades do seu programa. Tal como a experiência de vida mostra, esta torna-se altamente interactiva e, por definição, adaptativa, contendo uma espécie de infinitas possibilidades que lhe permitem deformar e resistir na presença de várias forças externas.

A mobília é também segura e habitualmente reconhecível. É quotidiana e, como tal, precisa de ser constantemente reinventada. Do ponto de vista do utilizador, torna-se um ponto de referência a partir do qual se vai negociar o desenho arquitectónico. Também se transforma num meio, que funciona segundo ritmos próprios por forma a produzir novas formas de experimentar o pensamento arquitectónico. Poderia ser designada como uma espécie de portal, tanto como uma virtualidade e uma abstracção com realidade materialista, que podemos usar de várias formas para experimentar, compreender e combinar para criar efeitos e produzir eventos. Movendo-a e movendo-nos em torno dela, pode explicar muito sobre uma história biogramatical da vivência no espaço.

Mais do que forma visual e configuração, a mobília mostra a maneira como experienciamos a casa, como temos tendência a fazer as coisas, e ainda como temos o hábito de refletir sobre nós próprios. Isto poderá proporcionar uma realidade hiperdimensional, ao mudar e alterar o nosso sentido de orientação, desafiando a capacidade do nosso cérebro para encontrar topologicamente o seu rumo. Permite escolher novas dinâmicas à medida que navegamos através de uma representação cognitiva do espaço existente, e perceber a relação perversa das conectividades no espaço e no tempo.

A sua disposição perturba a ordem. Cria diferentes ordens, mais íntimas mas também mais abstractas, um tipo de orientação em fluxo contínuo, como habitualmente conectamos a micro-configuração espacial do interior multi-direccional com as regras de forma geralmente aceites e as coordenadas do espaço como habitualmente as entendemos. Isto caracteriza a sua hiperdimensionalidade, uma qualidade que produz um excesso de efeitos sobre determinada espacialidade.

Portanto, poderíamos entender mais a mobília como uma tecnologia e uma ferramenta. Não uma ferramenta de design, mas do poder do cérebro, um ponto de ligação num sistema mais amplo de funções cerebrais que determinam a infraestrutura da casa, a negociação do seu espaço e, mais importante, uma conexão histórica entre matéria e acção. Trata-se de um acontecimento que desencadeia reacções e processos de pensamento, libertando informação em catadupa, combinando sentidos, tempos e dimensões em superfícies materiais. Como tal, são reviravoltas que abordam as formas e funções existentes e futuras, movimentos e possibilidades, e operam como tecnologias de experiências emergentes.


CONCLUSÃO
FORA

A conclusão aparece sob a forma de uma casa destinada a ser habitada por um pequeno grupo: numa escala entre a casa individual e edifício colectivo define-se um novo agregado familiar.

A continuidade doméstica substitui a compartimentação. Os diferentes níveis estabelecem uma falsa hierarquia adulterada pela ocupação programática e simbólica de cada plataforma. Uma experiência de transição e circulação, simultaneidade de acções e programa/função.

O interior, que substitui a fachada como elemento representativo e mediador, revela ainda os últimos vestígios de um quotidiano distante: camas, sanitas, degraus, a mesa-cozinha, a banheira colectiva.

A casa, que sobreviveu ao contexto, mantém com este uma âncora infraestrutural, por pudor e nostalgia.

Versão impressa do artigo aqui.

programa: Artigo equipa: João Fagulha, João Ruivo, Raquel Oliveira, Beth Hughes, Alex Geroussis, Olka Kiszkielis, Carolina Sumares, Rik den Heijer, André Albuquerque, Vassilis Oikonomopoulos cliente: Revista Arq.a ano: 2011